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A ciência de The Last of Us: devemos temer uma pandemia zumbi causada por fungos?

8 de março de 2023

Na estreia de “The Last of Us”, série de TV baseada no jogo de computador de mesmo nome, um fungo provoca uma pandemia que transforma pessoas em zumbis e altera seu comportamento. O seriado instigou a seguinte pergunta na imaginação popular: uma pandemia assim poderia realmente acontecer na vida real? Convenhamos, a perspectiva de uma nova pandemia, em que um microrganismo devora o cérebro de suas vítimas, soa bastante assustadora — especialmente depois de termos acabado de sair de uma pandemia em que o discurso político negacionista transformou boa parte da população brasileira em zumbis vestidos de verde e amarelo.

A série começa com um programa de entrevistas da década de 1960, no qual um cientista afirma que vírus e bactérias não são tão ameaçadores para o futuro da humanidade, e que o que deveríamos realmente temer são os fungos. Segundo ele, em função do aquecimento global, alguns fungos capazes de controlar o comportamento de insetos poderiam “facilmente” se adaptar a uma temperatura mais próxima da do corpo humano e nos infectar. Estaríamos então condenados, já que não haveria como desenvolver remédios ou vacinas contra fungos.

Mas existe algum fato por trás da ficção? De fato, há fungos que infectam e alteram o comportamento de insetos. Um deles, o Ophiocordyceps unilateralis, inspirou o criador de The Last of Us (o jogo). Popularmente conhecido como cordyceps, esse fungo produz esporos — células reprodutivas — que infectam formigas e se desenvolvem na hemolinfa, o sangue dos insetos. Após alguns dias, as formigas começam a apresentar mudanças de comportamento.

Um estudo publicado pela equipe do professor David Hughes, que atuou como consultor do jogo e de outros filmes de zumbis, explica bem esse processo: as formigas infectadas se afastam do ninho, passam a ter espasmos musculares e sobem em folhas ou galhos a cerca de 25 cm do chão. Em seguida, cravam suas mandíbulas nessas folhas e permanecem ali enquanto o fungo as devora por dentro, formando filamentos que produzirão novos esporos. Essas formigas, “possuídas” pelo fungo e suspensas sobre trilhas por onde passam insetos saudáveis, aumentam a probabilidade de que novos esporos caiam sobre outras formigas.

Essa estratégia altamente especializada e bem-sucedida é fruto de milhares de anos de coevolução parasita-inseto — bem-sucedida para o fungo, é claro, porque ficar preso a uma folha com a mandíbula travada enquanto outra criatura controla seus músculos dificilmente pode ser considerado um sucesso para a formiga. Aqui, a seleção natural deu ao fungo maiores chances de reprodução. Por exemplo, o fato de as formigas infectadas saírem do formigueiro e se pendurarem em locais próximos é essencial. Se apresentassem sintomas ainda dentro do ninho, provavelmente seriam eliminadas pela colônia. Além disso, o ambiente ideal para o crescimento do fungo é mais fresco e úmido do que o interior do formigueiro. Por fim, ao manter sua vítima pendurada em uma folha, o fungo garante que seus esporos caiam sobre outras formigas em trânsito, infectando um número maior de novos hospedeiros. Caso a formiga tivesse morrido no chão, as chances de dispersão dos esporos seriam muito menores.

Ainda não está totalmente claro como o fungo consegue controlar o corpo do hospedeiro; porém, ao contrário do que acontece na série, o parasita não invade o cérebro. Estudos recentes indicam que a explicação mais provável envolve alguma substância que interfere nas contrações musculares. A equipe do professor Hughes detectou aumento na produção de toxinas e maior ativação de genes relacionados à produção de alcaloides do esporão-do-centeio (ergot), compostos produzidos por fungos que podem alterar o comportamento, causando convulsões e alucinações. Fungos produzem psilocibina e precursores de LSD, compostos que são potentes psicodélicos.

Casos históricos de ergotismo — ou “Fogo de Santo Antão”, doença causada pelo consumo de centeio contaminado por fungos — estão bem documentados na literatura e produzem sintomas de epilepsia, convulsões, alucinações e gangrena. Os alcaloides do esporão são estruturalmente semelhantes a neurotransmissores como a serotonina. Eles também reduzem o fluxo sanguíneo e podem causar necrose de tecidos, especialmente nas extremidades. Além disso, estimulam o sistema nervoso central, provocando alterações no estado mental que vão desde alucinações até depressão.

Diversas “epidemias” de ergotismo são descritas na literatura. As mais recentes ocorreram em 1928, na Inglaterra, e em 1951, na França, ambas causadas por pão de centeio contaminado pelo fungo Claviceps purpurea. Os efeitos observados incluíam estado de delírio, pensamentos suicidas, dores e queimações intensas, gangrena e perda de membros.

Fungos que criam zumbis em cigarras da espécie Massospora cicadina produzem um composto alucinógeno que faz os insetos voarem descontroladamente, liberando esporos em todas as direções. E isso só depois de o fungo literalmente devorar os órgãos genitais e o abdômen do inseto! As cigarras macho normalmente cantam para atrair fêmeas. Uma vez infectadas — e mesmo após perderem seus genitais — elas continuam a cantar e, se conseguirem atrair uma fêmea, transmitem o fungo a ela. O comportamento do macho também muda: ele bate as asas de um jeito que imita o das fêmeas, atraindo outros machos desavisados, que também acabam infectados. O fungo é tão eficaz que consegue espalhar seus esporos não apenas pelo voo das cigarras, mas também por sua atividade sexual.

Mas e quanto a nós?
Seria possível o surgimento de um fungo criador de zumbis capaz de infectar humanos, talvez como resultado das mudanças climáticas, como sugere o personagem cientista da série?

É improvável. Esses parasitas são altamente especializados, infectam apenas uma espécie de hospedeiro. Os fungos que infectam certas formigas não são os mesmos que infectam lagartas, cigarras ou mesmo outras espécies de formigas. É preciso lembrar que um parasita necessita de milhares, ou até milhões, de anos de coevolução antes de conseguir dominar seu hospedeiro. Além disso, o aquecimento do planeta parece ser bastante prejudicial a esses parasitas.

O cordyceps que infecta formigas não é o único do gênero. Existem centenas de espécies que atacam diferentes insetos, e mais de 30 que causam alterações comportamentais. Um tipo bem conhecido, popularizado por razões bem diferentes, é o Ophiocordyceps sinensis, também chamado de “Viagra do Himalaia”. Esse fungo parasita lagartas e é usado na medicina tradicional chinesa não apenas como afrodisíaco e remédio para impotência sexual, mas também como suposta cura para câncer e diabetes. Além disso, é vendido como estimulante em lojas de suplementos naturais, chegando a custar até 125 dólares o grama. Embora tenha criado um mercado multimilionário, sua eficácia para qualquer coisa além de parasitar lagartas nunca foi confirmada pela ciência. Ainda assim, a alta demanda e o aquecimento global colocaram o fungo na lista de espécies ameaçadas. O parasita prospera em baixas temperaturas, e seu número despencou devido às mudanças climáticas e à exploração excessiva.

A série acertou ao atribuir a origem da pandemia a grãos contaminados pelo fungo, mas alterou o modo de transmissão dos esporos — que na natureza ocorre por dispersão no ambiente — para a transmissão por mordidas e comportamento agressivo de humanos zumbis. Insetos infectados por fungos não apresentam comportamento agressivo, e a única coisa que se assemelha a uma mordida é a mandíbula da formiga presa à folha. Os esporos são dispersos pelo ar e caem no solo. Nesse ponto, o microrganismo da série se assemelha mais ao vírus da raiva do que a um fungo criador de zumbis. Os criadores da série justificam a mudança dizendo que seria incômodo obrigar os atores a usar máscaras o tempo todo (no jogo, os esporos se dispersam pelo ar, como esperado).

Esperança de cura?
Outra previsão apocalíptica feita pelo epidemiologista na série é que certamente perderíamos uma guerra contra os fungos, já que seria “impossível” desenvolver uma cura. É verdade que nossas células são muito mais semelhantes às dos fungos do que às das bactérias, o que dificulta o desenvolvimento de drogas capazes de matar o fungo sem prejudicar células humanas. Existem poucos antifúngicos no mercado. Porém, com os incentivos certos — como uma emergência global de saúde — certamente não seria impossível encontrar uma cura ou desenvolver um medicamento, e, ironicamente, a solução talvez pudesse vir de outro fungo.

Pesquisadores que trabalham com o fungo criador de zumbis em formigas descobriram recentemente duas espécies diferentes de fungos que infectam o próprio cordyceps. O mecanismo ainda não é bem compreendido, mas os cientistas relatam que o cordyceps é consumido por esses fungos parasitas e que, em alguns casos, o novo fungo “castra” o cordyceps, tornando-o incapaz de se reproduzir, antes de devorá-lo. Fungos e bactérias competem por espaço e nutrientes, e não é incomum que produzam compostos letais contra seus concorrentes. Foi assim que descobrimos a maioria dos antibióticos produzidos por bactérias.

Uma ameaça não fictícia
Embora a pandemia zumbi possa ser apenas ficção, o aquecimento global pode de fato tornar o mundo mais suscetível a doenças emergentes — não doenças causadas por fungos altamente especializados, mas, de forma muito mais provável, por vírus transmitidos por mosquitos que podem se tornar endêmicos em regiões antes muito frias, ou simplesmente por facilitar o encontro entre espécies capazes de trocar microrganismos.

As regiões do mundo onde mosquitos podem viver confortavelmente estão se expandindo, aumentando as oportunidades para que insetos transmissores de doenças (como dengue, zika, febre amarela, chikungunya e malária) se tornem endêmicos em locais onde antes não eram. O aquecimento também reduz o habitat de espécies adaptadas a climas mais amenos, que então tendem a migrar para áreas mais favoráveis. O encontro de várias espécies antes separadas geograficamente pode favorecer a disseminação de vírus, bactérias e fungos de uma espécie para outra, ampliando o número de hospedeiros potenciais.

A criação intensiva de animais em confinamento facilita a transmissão de doenças, e o contato com humanos aumenta a chance de microrganismos “pularem” de animais para pessoas e se adaptarem. Foi o que aconteceu com a gripe aviária e a gripe suína. Mercados ilegais de animais silvestres também nos colocam em contato com espécies que funcionam como reservatórios de microrganismos e com as quais dificilmente cruzaríamos na natureza.

O apocalipse, seja ou não causado por uma pandemia incontrolável e muito mais agressiva que a da COVID-19, é muito mais provável de resultar desse conjunto de ações humanas irresponsáveis do que de um fungo que transforma formigas em zumbis.

Confira o artigo original:

© 2025 por Natalia Pasternak. Projetado e desenvolvido pela Harmonic.

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