Microbiologista, escritora e professora da Universidade de Columbia

Instituto Questão de Ciência no Brasil: da luta contra a pseudociência à assessoria a governos
30 de janeiro de 2023
Em janeiro de 2021, o então governador do Estado de São Paulo – o estado mais rico do Brasil e sede das universidades mais prestigiadas do país – me convidou a participar de uma apresentação oficial para tranquilizar o público sobre a segurança e a eficácia das vacinas contra a COVID-19. Alguns meses depois, em julho, eu prestava depoimento no Congresso Nacional, explicando a lógica dos ensaios clínicos à Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado, que buscava estabelecer a responsabilidade do então presidente Jair Bolsonaro na tragédia da COVID-19 no Brasil. E, em novembro passado, fui convidada a oferecer propostas de políticas públicas em ciência e saúde para o grupo de transição que organizava o novo governo federal, sob o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.
Tenho doutorado em Microbiologia e sou uma escritora de ciência premiada, mas em todas essas ocasiões eu estava atuando como fundadora e presidente de uma organização cética – o Instituto Questão de Ciência (IQC).
Nós – três amigos e eu – criamos o IQC em 2018, ano em que Jair Bolsonaro foi eleito presidente. Nosso objetivo era informar o público e os formuladores de políticas sobre a importância de tomar decisões baseadas em evidências científicas. Queríamos influenciar o debate público e ajudar a tornar a ciência um tema geral a ser considerado entre aqueles que costumam aparecer nas conversas cotidianas, como política, educação e, claro, em nosso país, futebol. Tivemos alguns modelos de referência em mente, e o CFI/CSI estava na nossa lista.
Um de nossos sócios fundadores, Carlos Orsi, conhecia bem o CFI e o Committee for Skeptical Inquiry, e escreveu ao diretor, Barry Karr, pedindo ajuda. Barry não poderia ter sido mais gentil e tornou-se um querido amigo de todos nós no IQC. Apresentamos um artigo na sessão Sunday Paper da CSICON 2018 e tivemos o privilégio de longas conversas com Barry Karr, Ray Hall e Susan Gerbic, que nos deram conselhos sobre como gerir uma ONG cética. O professor Richard Dawkins gravou um vídeo nos desejando sorte e expressando sua esperança de que o IQC se tornasse muito influente, e James Randi fez o mesmo.
Pergunto-me se o professor Dawkins tem noção de quão profético foi. Talvez ele seja psíquico. Em quatro anos, o IQC passou de uma organização cética de nicho a participar de audiências no Congresso, ser presença constante na mídia nacional e internacional, firmar parcerias com organizações estrangeiras, integrar uma força-tarefa da Organização Mundial da Saúde, expor o crescente movimento antivacina no Brasil (e ser processado por isso) e, com o fim do governo Bolsonaro, ser chamado para aconselhar a equipe de transição de Lula.
Lançamos o IQC em novembro de 2018, com o professor Edzard Ernst como palestrante principal e com a mensagem clara de que um de nossos principais objetivos seria combater a pseudociência e a medicina alternativa no sistema público de saúde do Brasil. Hoje, o SUS – nossa versão local do NHS britânico – financia 29 práticas alternativas, que vão da homeopatia e acupuntura até outras provavelmente desconhecidas por muitos, como constelação familiar, dança circular e geoterapia.
Nossa revista online, lançada em 2018, publica em média quatro artigos por semana e já acumulou mais de 3,7 milhões de leitores desde então. Durante a pandemia, chegamos a 200 mil leitores por mês e 80 mil em um único dia. Fomos a primeira publicação brasileira a expor a hidroxicloroquina como uma farsa.
O IQC começou como uma organização cética bem “tradicional” – um grupo de nicho, trabalhando no dia a dia para resistir às ondas de propaganda comercial, endosso oficial (ou complacência) e simpatia da mídia por coisas como horóscopos e “cura quântica”. Além de manter nossa presença online, realizávamos seminários, enviávamos cartas a jornais e oferecíamos cursos de treinamento para jornalistas de ciência e saúde.
Então a pandemia chegou, e o governo federal, dominado por conspiracionistas e negacionistas, não era confiável. De repente, nos tornamos a instituição de referência da mídia em busca de informações claras, compreensíveis e confiáveis sobre o vírus e suas supostas “curas”, como a hidroxicloroquina e a ivermectina. Nossa equipe trabalhou sem parar produzindo conteúdo relacionado à pandemia e desmentindo mitos sobre a Covid. Criamos nosso próprio programa no YouTube, Os Diários da Peste. Como resultado, fomos processados por chamar o presidente Bolsonaro de “peste”. Também organizamos o Dia “C” da Ciência (C de Ciência, em português), em resposta ao Dia “D” do governo, quando o Ministério da Saúde deveria realizar uma coletiva online para promover curas milagrosas contra a Covid. O “Dia D” foi cancelado após anunciarmos que nosso “Dia C” traria as opiniões de sete ex-ministros da Saúde e vários cientistas.
O ano de 2021 marcou nossa primeira experiência como co-organizadores de um evento internacional, o Aspen Global Congress for Scientific Thinking and Action, em parceria com o Office for Science and Society do Aspen Institute. Um dos resultados desse congresso foi o lançamento do documentário Infodemic, da PBS, com a participação de muitos de nossos palestrantes. O IQC também foi contratado para assessorar o órgão responsável pelo censo nacional em questões de segurança contra a Covid.
Em 2022, lançamos nosso Observatório de Políticas de Ciência, para acompanhar legislações e políticas públicas relacionadas à ciência, saúde e meio ambiente no Brasil.
O ponto alto desse período talvez tenha sido quando fomos chamados pela equipe de transição presidencial para apresentar propostas em ciência e saúde. Sugerimos a criação do cargo de Conselheiro Científico-Chefe da Presidência e mudanças na estrutura do Programa Nacional de Imunizações para mantê-lo livre de interferências ideológicas.
À medida que a emergência da Covid recua, percebemos que nossa luta inicial, a guerra de guerrilha contra a pseudociência e a medicina alternativa, ainda precisa ser travada. Algumas das pessoas que foram nossas aliadas e apoiadoras na luta contra a ivermectina parecem ter dificuldade em simpatizar com nossas críticas à homeopatia. Saímos da margem para o centro do debate, e agora buscamos encontrar nosso lugar em algum ponto intermediário, ao mesmo tempo em que fortalecemos nossa posição como assessores para políticas públicas baseadas em ciência. Vai ser interessante.
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