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Genética, raça, gênero e geleia

30 de junho de 2025

Quando pensamos em genética, por que é quase automático pensar em diferenças? No quanto somos diferentes de outras pessoas por causa dos nossos genes? E de outros organismos? Como geneticista, sempre achei curioso como tendemos a focar nas diferenças. Por que não perguntar o quanto somos parecidos? Este foi o tema da minha palestra no Festival Fronteiras do Pensamento em maio de 2025, em Porto Alegre. Aproveitei a oportunidade para falar de diferenças, semelhanças, raças, gêneros... e geleia (que vai fazer sentido no final, prometo).

Alguns dados para refletir: nós, humanos, somos aproximadamente 99,9% idênticos no nosso genoma. No 0,1% que varia, temos um enorme número de SNPs (polimorfismos de nucleotídeo único), regiões do genoma que diferem, mas não necessariamente codificam para um gene conhecido, com uma função. São pedaços de DNA que podem aparecer com mais frequência em uma população ou região geográfica, e com outra frequência num grupo diferente. E dificilmente dá para concluir algo disso.

Podemos dizer, por exemplo, que em determinada região do continente africano uma população tem um SNP com um determinado nucleotídeo (A, T, C, G) em 60% das pessoas sequenciadas. E talvez esta população também tenha uma frequência maior ou menor de doença cardíaca. Mas não dá para afirmar que este SNP é a causa da doença cardíaca. Pode ser apenas coincidência. Não sabemos para que serve este SNP, só sabemos que está lá, em uma frequência de 60%. O que também não quer dizer que não vai existir em outras populações, em outros continentes, em outras frequências.

De repente, o mesmo SNP aparece com 20% em uma população do continente europeu. Então, se você apresenta este SNP no seu genoma, podemos calcular uma probabilidade de seus antepassados terem vindo deste ou daquele continente. Mas sempre será apenas uma probabilidade.

Alguns fatos divertidos sobre frequências: hipertensão arterial (pressão alta) é mais comum em homens afro-americanos do que em americanos brancos. Mas a frequência em homens da África Subsaariana é mais baixa do que ambos. Americanos solteiros têm maior probabilidade de ter doença cardíaca do que homens casados. Não imagino que seja uma questão de propensão genética.

Também sabemos que, neste 0,1% que varia de pessoa para pessoa, encontramos maior variação dentro de determinadas populações do que entre populações diferentes. Algo em torno de 96%. Destes 0,1%. Isto quer dizer que se pegarmos aleatoriamente duas pessoas de uma mesma região do continente africano, elas terão genomas mais diferentes entre si do que se comparadas a uma pessoa de outra parte do mundo. Ou seja, as diferenças que, historicamente, culturalmente, são usadas para definir “raça” – brancos, negros, asiáticos, etc. – estão em 4% de 0,1%.

Somos todos, do ponto de vista biológico, muito mais parecidos do que diferentes. E por isso sociedades de genética e antropologia consideram as raças humanas construtos sociais, não biológicos. Raças precisam e devem ser estudadas, e levadas em consideração para políticas públicas de justiça social, porque têm sido fator de discriminação e marginalização. Mas não são um conceito biologicamente relevante.

Para facilitar este entendimento, vamos fazer uma comparação com raças de cachorros. Faz sentido biológico falar em raça canina? Com diferenças genéticas significativas? Sim. A diferença é gritante: se em humanos a base genética das diferenças ditas “raciais” é de 4% da variação geral de 0,1%, em cães a diferença genética média entre as raças é de aproximadamente 27% da variação geral (que é muito menor do que a humana).

Em cães, as diferenças genéticas são maiores entre as raças. Cães da mesma raça são absurdamente similares entre si. A explicação para isso é histórica e comercial. Cães foram selecionados artificialmente. A produção artificial de raças levou à redução de diversidade genética dentro de cada grupo. Imagine que alguém queria cachorros brancos, pequenos, peludos e dóceis, para serem animais de companhia. Este criador começa a selecionar em todas as ninhadas aqueles que são mais próximos destas características. E cruza-os entre si, para gerar filhotes cada vez mais brancos, menores, peludos e dóceis. A cada geração, a variação genética diminui, e a “pureza” da raça aumenta. Já vira-latas têm um perfil de diversidade genética mais próximo do humano. Somos todos vira-latas, e isso é ótimo!

Daria para criar raças humanas do mesmo jeito que fizemos para cachorros? Daria, e tem gente que já tentou: lembra da tal “raça ariana”? Mas, para isso, seria necessário um processo de “domesticação” assim como foi feito para animais e plantas. O que reduziria a diversidade genética e aumentaria a suscetibilidade e a incidência de doenças. O que já acontece em várias raças caninas. Muitas delas são mais propensas a surdez, doenças de pele, problemas de quadril e de coluna.

Mas e as diferenças na aparência humana? De onde vêm? O que significam? Vamos pegar o óbvio, a cor da pele, que tem sido usada historicamente como principal marcador de “raças” humanas.

Evolutivamente, cor da pele ficou associada à geografia por causa de luz solar. Quanto mais perto do equador, com maior incidência de luz UV, mais populações de tons de pele mais escuros, que oferecerem maior proteção. Quanto mais nos afastamos do equador, pele mais clara torna-se vantajosa, porque aproveita melhor a pouca luz UV disponível em altas latitudes para fixar vitamina D.

Existem diversos genes que codificam para cor de pele e regulam a quantidade de melanina, o que vai produzir o enorme espectro de cores que vemos em humanos. Sim, porque a cor da pele existe num espectro. Já viu aquelas tabelas de base de maquiagem? Há mais de 60 tons de pele, do mais claro ao mais escuro. Filhos dos mesmos pais podem ter tons de pele diferentes, dependendo de quais genes herdam de cada genitor. Pessoas com tons de pele muito parecidos, mas de regiões diferentes do planeta, podem ter a mesma cor, mas codificada por genes diferentes.

A mesma cor de pele pode não ter a mesma origem genética. Aparência não define ancestralidade.

Já nos cães ocorre o contrário. Os genes para tipo de pelo por exemplo, são os mesmos em diferentes raças, e é fácil traçar a origem, pois a seleção foi toda artificial. Ou seja, os genes que codificam para cor do pelo, formato da orelha, etc., em geral são conhecidos e têm uma origem comum. Conseguimos traçar a ancestralidade dos cães facilmente.

A mesma coisa acontece com outras características, por exemplo, tolerância à lactose, que em humanos adultos está relacionada evolutivamente a locais de criação de rebanhos e gados de leite. A persistência da capacidade de digerir leite na idade adulta apareceu de forma independente, e com origem em genes diferentes, na Europa, Oriente Médio, partes da África e Sul da Ásia. Ou seja, não há uma “raça” de pessoas tolerantes à lactose.

E nada de geleia até agora!

Vamos falar de diferença de gênero. Homens e mulheres são mais iguais ou mais diferentes? Para responder a isso, eu preciso que você abra um vidro de geleia. E tenho certeza de que em algum momento da sua vida, você ou já pediu ajuda, ou já pediram a sua ajuda para abrir um vidro de geleia. E posso apostar também na probabilidade de você ser mulher se pediu ajuda, e homem, se foi requisitado para a função.

Por que abrir vidros costuma ser mais fácil para homens do que mulheres? A pesquisadora Janet Hyde respondeu a esta pergunta há 20 anos, em estudo publicado em 2005.

Ela fez uma meta-análise – uma espécie de apanhado geral – de estudos sobre diferenças de habilidades e comportamentos entre os gêneros, e classificou as diferenças com um coeficiente. Quanto maior o coeficiente, variando de 0 a 2, maior a diferença. Quanto mais próximo de zero, mais similaridade.

Alguns fatores, como altura, são óbvios, com coeficiente em torno do grau máximo. Ou seja, ao escolher um homem e uma mulher ao acaso, é muito provável que o homem seja mais alto. Muito provável, mas não 100% certo.

As diferenças medidas foram classificadas em seis categorias: habilidades cognitivas, comunicação verbal e não verbal, diferenças sociais ou de personalidade, medidas de bem-estar como autoestima, diferenças motoras como arremesso e força, e diferenças gerais, como valores morais.

Sabe quais as diferenças mais significativas? Força de arremesso, velocidade de arremesso, e força de pegada. Essa última é justamente a força necessária para abrir o vidro de geleia. Também foram bem altos os coeficientes de diferença de comportamentos sexuais como masturbação e sexo casual. Mas aí a gente se pergunta se aqui não há um componente cultural forte. Será que mulheres se masturbam menos porque acham que é errado? Ou será que preferem não falar, mesmo em pesquisa de opinião?

Sabe o que não deu diferença significativa? Nada daquilo que faz parte do “senso comum”. Setenta e oito por cento dos comportamentos ou habilidades pesquisados tiverem coeficientes próximos de zero (30%), ou menores do que 0,35 (48%).

Pense em quantas afirmações do senso comum sobre diferenças "essenciais" entre os gêneros fazem parte da nossa cultura.

Geralmente, concordamos que homens são melhores em localização geoespacial, mulheres em línguas. Que mulheres são mais sensíveis, homens mais racionais, mulheres mais cuidadoras, homens melhores em matemática. Nada disso foi estatisticamente validado como significativo. O grau de diferença em comportamentos como competitividade ficou em torno de 0,07! Habilidade para resolver problemas matemáticos: 0,08. Orientação espacial: 0,19 em um estudo, 0,13 em outro, 0,44 em um terceiro. Ajudar o próximo ficou em 0,13.

A crença de que homens e mulheres têm cérebros fundamentalmente diferentes, que foram programados para ser assim ou assado, não se sustenta. Claro que há diferenças biológicas, evolutivas, influências hormonais. Mas quando se fala de capacidades e habilidades específicas, a verdade é a mesma que para as raças: a diferença é maior dentro do gênero do que entre os gêneros. Por exemplo, existe mais variação de nível de habilidade matemáticas entre mulheres, ou entre homens, do que comparando homens a mulheres.

Além disso, o cérebro é plástico. Não é pré-programado. Estamos o tempo todo aprendendo coisas novas, e estes aprendizados se refletem em mudanças estruturais no cérebro. O melhor exemplo disso é o famoso estudo feito com os taxistas de Londres.

Até um tempo atrás, para ser taxista em Londres era preciso passar em uma prova super rigorosa. Os candidatos precisavam memorizar o mapa da cidade, saber exatamente qual rua era mão para que lado e como fazer a rota mais rápida entre dois pontos. Eles estudavam muito para conseguir a licença.

O resultado? Taxistas de Londres tinham uma região do cérebro, o hipocampo, muito mais desenvolvida do que não taxistas de um grupo controle. E o hipocampo era mais desenvolvido de acordo com o tempo de trabalho como taxista. Então, será que mesmo os estudos que mostram que homens e mulheres têm partes diferentes do cérebro mais ou menos desenvolvidas descrevem um fenômeno puramente biológico?

Se pudéssemos acompanhar o cérebro de meninos e meninas desde o nascimento, será que conseguiríamos identificar diferenças culturais e sociais que moldam comportamento e habilidades? O tempo que passamos estimulando meninas e meninos com tipos diferentes de brinquedo? As diferenças causadas por diferentes tons de voz e expressões faciais?

E por que tudo isso importa? Isto é o que eu discuto com os meus alunos do curso de uso de evidências para políticas publicas na Universidade Columbia. Saber que não existem raças biológicas pode corrigir injustiças que usam estes conceitos para manter populações marginalizadas. Ao mesmo tempo, ignorar o fator cultural e social pode ser um tiro no pé, e deixar populações discriminadas sem proteção.

O mesmo vale para gênero. A insistência de que homens e mulheres são mais diferentes do que realmente são, e de que isso é imutável, é argumento frequentemente usado como desculpa para colocar as mulheres no “devido lugar”. Serve também para desencorajar meninas e jovens adultas a buscar certas carreiras.

Pode ainda gerar injustiças no mundo profissional. Estudo conduzido por Victoria Brescoll e Eric Luis Uhlmann, da Universidade Yale, em 2008, comparou como voluntários reagiam a um vídeo simulando uma entrevista de emprego com condições idênticas, mudando apenas o gênero do entrevistado. Eram vídeos em que o entrevistado reagia com raiva a uma determinada situação.

Os voluntários avaliaram pior as mulheres em todas as situações, embora os vídeos fossem iguais. Além disso, atribuíram o comportamento das mulheres a fatores inatos, com frases como “ela é agressiva”, “ela não tem autocontrole”. Para os homens, o comportamento agressivo foi atribuído a estímulos externas. “Ele estava irritado”, “ele foi provocado”.

Existem saídas interessantes para controlar estes vieses. Uma estratégia que tem sido testada é a de usar testes duplo cegos para contratação. Orquestras que usam este método conseguiram aumentar a contratação de mulheres de 5%, nos anos 1970, para mais de 30%, atualmente. Na seleção, os candidatos tocam atrás de um biombo. O comitê julgador não vê o músico, apenas escuta e avalia a performance.

Não vai ser fácil mudar o senso comum. Mas temos que começar por algum lugar. Eu comecei com os meus alunos. Você pode começar na sua família, no seu círculo de amigos. Lembra-se do vidro de geleia? Pode ser uma excelente desculpa para iniciar uma conversa: “sabia uma coisa engraçada, que a força de pegada pra abrir o vidro é uma das poucas diferenças significativas entre homens e mulheres?”.

Natalia Pasternak é professora de ciência e políticas públicas na Universidade Columbia (EUA) e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC)

Confira o artigo original:

© 2025 por Natalia Pasternak. Projetado e desenvolvido pela Harmonic.

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